Ontem andei pelas avenidas novas à procura da minha árvore. Aquela árvore esguia, frágil e frouxa que ajudei a plantar quando tinha apenas 11 anos e ainda não separara, na confusão do mundo, o céu da terra e as borboletas das flores.
Foi há muito tempo, em certa manhã de sol barulhento. Na véspera o Sr. Professor prevenira-nos da cerimónia:
– Amanhã não se esqueçam de trazer lanches. Vamos plantar a árvore da Liberdade!
E eu apareci com a infância mais evidente na fatiota dos domingos, merenda debaixo do braço e «Sementeira» debaixo da língua, pronto para assistir àquela solenidade tão carregada de pompas de mistério.
Formámos a dois e dois. E, com o Sr. Professor à cabeça, partimos para as avenidas novas, nessa altura um dédalo de arruamentos sem prédios nem passeantes.
Após uma longa marcha, olhos fixos nas nucas da frente, parámos. E então o Sr. Professor, em voz rouca que não se harmonizava com o viço primaveril da manhã, pronunciou um pequeno discurso pagão. Referiu-se às plantas, aos frutos e aos ninhos. Recomendou-nos que não fizéssemos mal aos pássaros. [...] Repetiu o eterno hino à liberdade. E a suar, numa girândola final, rogou-nos que cantássemos, em coro, a «Sementeira».
Obedecemos logo de bom grado, comovidos com as palavras [...] do Sr. Professor, que, naquele dia, em vez de nos soterrar num quarto sem sol, nos falava da liberdade.
Abrimos as bocas e cantámos. Berrámos. A letra desse hino, a que anda associada uma injusta ideia de ridículo, saiu das nossas bocas numa Primavera de trinta corações a pulsarem em comum.
Terminada a canção, cada um de nós, quase com prazer litúrgico, pegou na pá e começou a deitar terra para a cova onde o Sr. Professor enterrara a árvore sagrada. Durante alguns minutos trabalhámos com fervor, num arder de olhos em festa – contentes por mexermos em terra, ébrios do cheiro das plantas e das raízes, sob o azul envolvente daquela manhã fecunda.
Eu, pelo menos, trabalhei arduamente. Lancei, incansável, terra e mais terra para a cova. E quando, por fim, a árvore se aguentou sozinha na alameda buliçosa de crianças a devorarem fatias de pão com manteiga, quedei-me a olhá-la, durante largo tempo, impado de orgulho e fé.
Senti, ingenuamente, infantilmente – como todos os meninos sentiam em 1911 –, que a minha liberdade ficava talvez unida para sempre àquele ser preso ao solo por raízes tão fracas e tenras. Senti...
Mas o Sr. Professor não me deixou sentir mais. Ordenou com secura que formássemos a dois e dois.
E daí a pouco tempo deslizávamos outra vez para a escola como um rebanho cívico que cumprira já o seu dever burocrático e diligente de cantar a «Sementeira» e de arremessar algumas pazadas de terra para uma cova.
José Gomes Ferreira, O Mundo dos Outros, Lisboa, Portugália, 1987
Sem comentários:
Enviar um comentário